
Além do legado acadêmico, a pesquisa busca aproximar a comunidade de sua própria história
A Segunda Guerra Mundial não ficou restrita aos livros e aos grandes centros de poder. No Rio Grande do Sul, milhares de jovens foram convocados para lutar ao lado das forças aliadas, e suas histórias, muitas vezes esquecidas, ganharam novo fôlego com a pesquisa da mestranda em História, Julia Bender. O estudo, que resultou no livro Os Escolhidos – O recrutamento no Rio Grande do Sul para a Segunda Guerra Mundial, mergulha em documentos militares, arquivos e depoimentos para reconstruir a participação gaúcha no conflito, revelando detalhes inéditos e a importância de preservar essa memória.
Nascida e criada em Ibirubá, Julia de Oliveira Bender é professora da rede Sinodal e também atua na rede pública, apaixonada pela História desde a adolescência. “Estudar história amplia o horizonte, ajuda a entender por que certos sistemas funcionam como funcionam e dá uma visão mais próxima da realidade”, afirma. Formada pela Universidade de Passo Fundo, onde ingressou com bolsa do Prouni, seguiu carreira acadêmica e hoje se dedica à pesquisa histórica com foco no século XX. “Eu ainda acredito muito no poder transformador da educação. Sempre digo aos meus alunos que a escola pode mudar destinos, e que valorizar o estudo é a melhor forma de transformar a própria vida”, acrescenta.
O interesse pela Segunda Guerra nasceu ainda no processo seletivo do mestrado. Eventos acadêmicos a aproximaram de veteranos e familiares, e o contato com arquivos militares consolidou a escolha do tema. A maior parte do levantamento foi feita no Arquivo Militar de Porto Alegre, com apoio de correspondências e informações de unidades no Rio de Janeiro. “O Rio Grande do Sul foi visado pelo Exército devido ao histórico de guerras internas, como a Revolução Farroupilha e a Revolução Federalista, que conferiam experiência de combate”, explica. Outro fator de destaque foi a colonização alemã no Estado, alvo de atenção por parte da propaganda nazista, que buscava recrutar descendentes para as fileiras alemãs.
Segundo a pesquisa, o Brasil enviou 25.887 soldados à guerra, sendo cerca de 2 mil gaúchos — o quarto maior contingente entre os estados. “De Ibirubá, localizei registros de aproximadamente 20 pracinhas, mas apenas um participou diretamente de combate e foi ferido. Os demais atuaram como intérpretes ou em funções de apoio”, relata Julia, destacando a dificuldade de confirmar todos os nomes devido à perda ou divergência de registros.
A seleção dos combatentes passava por rigorosa inspeção médica em Santa Maria. “Não podia faltar um dente, ter histórico de cirurgias ou doenças. Queriam montar um exército perfeito. Depois, com a necessidade de mais soldados, as exigências diminuíram”, conta. Muitos não voltaram para casa após o alistamento e só anos depois receberam reconhecimento oficial, com indenizações e condecorações. “No retorno, não havia grande valorização. Foi só muito tempo depois que esses homens receberam uma pensão ou medalhas. Isso mostra como a memória da guerra demorou para ser reconhecida oficialmente”, lamenta.
A entrada do país no conflito foi motivada pela pressão dos Estados Unidos e pela reação ao afundamento de navios brasileiros por submarinos alemães em 1942, rompendo a neutralidade mantida desde 1939. “Getúlio Vargas, que no início negociava tanto com Estados Unidos quanto com a Alemanha, foi muito estratégico. Ele só se posicionou quando percebeu que isso traria vantagens políticas e militares ao Brasil”, analisa.
As memórias dos veteranos são marcadas por traumas. “Todos relatam medo constante, sobressaltos com qualquer ruído e sonhos recorrentes com o combate. Um pracinha me disse que pensava em desistir, mas lembrava da mãe viúva e isso o manteve firme”, conta Julia. Ela destaca que, para uso acadêmico, só considera depoimentos quando há padrões confirmados em várias fontes, devido à natureza das memórias traumáticas. “A lembrança de uma guerra é algo muito delicado. O medo e o estresse fazem com que se misturem vivências próprias com relatos de outros soldados. Por isso, como historiadora, tenho que trabalhar com muito cuidado para que o registro seja o mais fiel possível à realidade.”
Julia lembra, com emoção, da conversa que teve com o ibirubense Guilherme Camera, o último pracinha vivo da cidade quando iniciou a pesquisa. “Foi uma honra ouvir alguém que esteve lá. Ele me falou não só sobre a guerra, mas sobre a saudade da família, as dificuldades e como aquele período mudou para sempre a vida dele. É algo que me marcou profundamente como pesquisadora e como pessoa.”
O livro segue uma narrativa cronológica: começa contextualizando as relações internacionais e a política do Estado Novo, detalha a criação da FEB, os critérios de recrutamento e a visão do Exército sobre os gaúchos, e encerra com o retorno dos pracinhas e a repatriação tardia de corpos sepultados na Itália. “É um trabalho sem romance, fundamentado em documentos e que preserva a integridade histórica”, resume.
Além do legado acadêmico, a pesquisa busca aproximar a comunidade de sua própria história. “É um orgulho conviver com alguém que participou de um conflito que mudou o mundo. A educação tem esse poder: fazer com que a gente aprenda com os erros e evite repeti-los”, afirma. Atualmente, Julia se prepara para o doutorado, pesquisando a neutralidade da Argentina na Segunda Guerra por meio de periódicos da época.
O livro Os Escolhidos pode ser adquirido com a autora, pelo Instagram @juliabender, ou em plataformas como Amazon e Mercado Livre, nas versões impressa e digital.