
Jornalista local transformou um encontro inesperado com testemunhas oculares em 2015 numa investigação contínua sobre passagens subterrâneas e a possível ligação da cidade com foragidos do nazismo.
Em 2015, ao preparar uma edição especial pelos 60 anos de Ibirubá, o jornalista Clóvis Quadros de Mello Messerschmidt — proprietário da revista Enfoque e repórter há mais de duas décadas — tropeçou em uma pauta que mudaria para sempre sua trajetória: os relatos de moradores que afirmavam ter entrado e percorrido túneis sob o centro da cidade. O que começou como uma curiosidade fora de pauta se tornou uma investigação de anos, recheada de entrevistas, documentos e histórias que mesclam memória oral, pesquisa histórica e mistério.
Por mais de meio século, os túneis de Ibirubá foram apenas um murmúrio subterrâneo — histórias contadas em conversas de calçada, cochichadas entre famílias antigas, perdidas entre o folclore e a descrença. Até que, em 2015, um jornalista com faro para o que pulsa invisível sob a cidade tropeçou na pauta que passaria a guiá-lo. Clóvis Messerschmidt, armado de um gravador, um bloco de notas e a teimosia de quem não aceita portas fechadas, começou a colecionar relatos, visitar alçapões, folhear arquivos do DOPS e acompanhar de perto cada escavação. Desde então, sua narrativa se entrelaça às tantas outras tentativas — de emissoras nacionais, de repórteres curiosos, de moradores que guardam memórias — numa busca incessante por respostas. Respostas que, entre paredes de tijolos, ossos e dentes sob perícia e documentos continuam a se esconder na penumbra dos subterrâneos da cidade
.O primeiro mergulho
A partir daquele encontro inicial com testemunhas oculares, Clóvis passou a registrar sistematicamente depoimentos de quem afirmava ter visto ou usado as passagens. As narrativas convergiam em pontos comuns: alçapões em casas antigas, corredores interligando imóveis no centro e, no centro da história, a figura do médico Frederico Ernesto Braun — herdeiro de uma das famílias pioneiras da cidade, que construiu o Hospital Santa Helena e, segundo relatos, mantinha conexões subterrâneas com sua residência e outros pontos estratégicos.
Entre as testemunhas, o jornalista entrevistou Francisca Schöfer, a “Cice”, ex-enfermeira e doméstica na casa dos Braun, que descreveu ter visto frascos em formol e corpos no subsolo. Outro depoente, o pedreiro José Godoy de Souza, disse ter ajudado a construir “uma casa subterrânea” ligando o hospital e a residência. Há ainda histórias de objetos com simbologia nazista encontrados nesses espaços.
Essas declarações alimentaram uma hipótese mais ampla: as passagens poderiam ter sido usadas para esconder pessoas que buscavam refúgio no Brasil após a Segunda Guerra Mundial, em especial nazistas fugitivos.
Repercussão nacional
A investigação ganhou novo fôlego em 2019, quando o Fantástico exibiu imagens de porões e corredores interligando imóveis próximos no centro da cidade. Na época, a matéria de 9 minutos e 36 segundos foi a principal pauta do programa, ganhando destaque em chamadas durante todo o fim de semana na grade da emissora. Conduzida pelo jornalista Álvaro Pereira Júnior, a matéria gerou um podcast de 19 minutos (disponível em globo.com. O jornal Zero Hora também deu ampla repercussão da história. Uma escavação oficial, autorizada pela prefeitura, revelou uma tubulação antiga e uma parede de tijolos, mas não confirmou a extensão ou função das estruturas. O acesso ao outro lado dessa parede nunca foi amplamente divulgado.
Entre as peças documentais, registros do extinto Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) mostram que autoridades monitoravam, em Ibirubá e na região, indivíduos simpatizantes ou ligados à ideologia nazista. Esses documentos indicam o contexto histórico e a presença de figuras sob vigilância, mas não comprovam de forma direta que os túneis tenham sido usados para esconder foragidos ou atividades ilegais.
Outro capítulo da história envolve restos encontrados durante as investigações informais. Em 21 de fevereiro de 2020, a 5ª Delegacia de Polícia Regional do Interior de Ibirubá registrou oficialmente o encaminhamento de dentes para perícia, solicitando confirmação se eram humanos e, em caso positivo, a determinação de sexo, raça e idade aproximada. Até hoje, porém, o resultado dessa perícia não foi divulgado publicamente, mantendo esse ponto no terreno da incerteza.
Entre o mito e a arqueologia urbana
Clóvis mantém cautela ao tratar das histórias. Ele reconhece que porões eram comuns na arquitetura de imigrantes europeus, usados para conservar alimentos e bebidas, mas pondera que há elementos que não se encaixam apenas nesse costume. “O que me chama atenção é a coerência de relatos de pessoas que não se conhecem, descrevendo estruturas similares”, afirma.
Para ele, a única forma de resolver o enigma é aplicar métodos científicos: georradar, escavações controladas, mapeamento 3D e análises de material e ossos atribuídos ao passado sombrio da cidade. Até lá, as narrativas continuarão alimentando tanto o fascínio quanto a dúvida.
Quase dez anos após aquele encontro fortuito em 2015, Clóvis segue recebendo informações, visitando locais e publicando novas descobertas. “Já tentei encerrar essa pauta, mas ela sempre volta. Alguém me liga, manda uma foto, conta uma história nova. É como se os túneis não quisessem ser esquecidos”, diz.
E enquanto não houver respostas definitivas, Ibirubá seguirá vivendo com dois mundos sobrepostos: o das ruas e praças à luz do dia e o dos corredores escuros sob a terra, guardando segredos que apenas parte da cidade ousa contar.